Como é sabido, vivemos em um mundo social dominado por representações das periferias – e de seus moradores – baseadas em estigmas que impedem uma apreensão global e complexa sobre as realidades sociais, econômicas, políticas, ambientais e culturais desses territórios. E, como o imaginário é um elemento fundamental na instituição do real, as representações estereotipadas sobre os territórios onde residem os grupos sociais mais empobrecidos da cidade orientam as políticas públicas e investimentos sociais privados. Ações que, além de não efetivarem as reais demandas da sua população, contribuem para reforçar processos de expropriação material e apropriação simbólica que fragilizam estratégias coletivas construídas por esses grupos periféricos para exercerem o seu direito à cidade.

A dinâmica de estigmatização acontece tanto nos países dominantes (hegemônicos) como nos países subalternizados (não hegemônicos) na ordem econômica e sociopolítica vigente. Seus pressupostos são sociocêntricos: os padrões utilizados para qualificar as periferias, em geral, são referenciados em teorias urbanísticas e pressupostos culturais/estéticos vinculados a determinadas classes e grupos sociais hegemônicos (dominantes). Eles consagram o que é um ambiente saudável, agradável e adequado às funções que uma cidade deve exercer no âmbito do modelo civilizatório em curso. Na mesma linha, definem um determinado conceito de ordem e as formas pretensamente adequadas de comportamento social e de agir no mundo.

Com isso, temos o fortalecimento das noções de ausência, carência e homogeneidade como elementos de percepções reducionistas e de classificações hierárquicas das periferias em relação aos demais espaços da cidade. Toma-se como significante aquilo que a periferia não seria em comparação a um modelo idealizado de cidade, baseado em padrões culturais e educativos colonizadores construídos, em geral, pelas parcelas mais enriquecidas da população. Nessa compreensão, as periferias são concebidas como espaços precarizados, com sujeitos que têm a sua historicidade negada, seus territórios não reconhecidos como legítimos e seus moradores, não raramente, tratados de forma exotizada (a não civilização, por excelência).

As periferias, todavia, existem na relação com as instituições do mundo social, especialmente o Estado e o Mercado formal. Nessa tensão, elas são constituídas, em geral, por tipos de ocupação que não seguem os padrões hegemônicos que o Estado e o Mercado definem ou, quando construídos por esses entes, elas são materializadas a partir de uma perspectiva de subalternidade e precariedade que destituem as identidades, as inventividades práticas e os saberes ali construídos. Logo, ao longo dos anos e do processo de regulação da vida social estabelecido pelo Estado, os assentamentos em periferias, por suas características morfológicas e também por sua composição social, foram sendo considerados como expressões de ilegalidade e/ou em desconformidade às referências estéticas e morais afirmadas pelos grupos hegemônicos que exercem o poder político e econômico nas cidades.

É urgente superar essa visão reducionista, estereotipada e desqualificadora dos territórios periféricos. Com efeito, a pluralidade das formas e das dinâmicas sociais, econômicas e culturais se coloca como um desafio na compreensão do que é uma periferia e, por conseguinte, na definição de parâmetros abrangentes que orientem leituras e ações mais precisa. Apesar da consciência sobre a condição heterogênea e as distintas formas-funções das periferias do mundo, há vários elementos que são comuns entre elas. Cada periferia constitui uma morada no conjunto da cidade, compondo seu tecido urbano e estando, portanto, integrada a este. Logo, periferias são elementos centrais da cidade, lhe dão identidade, sentido e humanidade.

Deste modo, a definição de periferia não deve ser construída em torno do que ela não possuiria em relação ao modelo dominante na dinâmica socioterritorial ou da distância física em relação a um centro hegemônico. Ela deve ser reconhecida pelo conjunto de práticas cotidianas que materializam uma organização genuína do tecido social com suas potências inventivas, formas diferenciadas de ocupação do espaço e arranjos comunicativos contra-hegemônicos e próprios de cada território.

Assim, é a partir da concretude da sua morfologia; do reconhecimento das práticas estabelecidas por seus moradores e das condições objetivas de sua vida social que devem se estabelecer as referências possíveis do que é uma habitação digna, dotada das condições necessárias para o bem-estar e bem-viver. Um lugar pleno e complexo, onde grupos se aproximam por valores, práticas, vivências, memórias e posição social, afirmando sua identidade como força de realização de suas vidas.

Compreender a cidade em sua pluralidade é reconhecer a especificidade de cada território e, igualmente, afirmar a condição cidadã e o protagonismo de todos os seus moradores e moradoras. Para tal, é necessário reconhecer que os mesmos são os principais sujeitos aptos a narrarem suas práticas sociais e culturais, símbolos de resistência e reinvenção, formas concretas de afirmação e invenção de direitos, que necessitam serem amplamente garantidos na forma de políticas públicas. A garantia deste princípio se torna possível a partir da construção de uma radical experiência democrática de Direito à Cidade.

Este texto foi extraído, de forma adaptada, do Manifesto da Maré, elaborado em 2017 no Seminário Internacional das periferias e já traduzido em 16 idiomas. Ele pode ser lido na Revista Periferias (www.revistaperiferias.rog) do Instituto Maria e João Aleixo, número 1.